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22 de agosto de 2006

António Aniceto Monteiro






ANTÓNIO ANICETO MONTEIRO (1907-1980)



2.as Jornadas Técnico-Pedagógicas
Escola Superior de Tecnologia e Gestão
22 e 23 de Maio de 2001, Beja, Portugal

Uma curta viagem pela História da Matemática em Portugal

Teresa Monteiro*


*Área Departamental de Matemática,
Escola Superior de Tecnologia e Gestão,
Instituto Politécnico de Beja,
7800-499 Beja, Portugal,
teresa.monteiro@estig.ipbeja.pt.


Resumo: Uma outra face do estudo da matemática, à qual nem sempre é possível
dedicar-lhe o tempo necessário e merecido, é a história da matemática e o percurso científico-pedagógico e humano de grandes personalidades a ela ligados. Por vezes conhecem-se melhor autores da antiguidade clássica que autores actuais, por vezes conhecem-se melhor autores de nacionalidades estrangeiras que autores de nacionalidade portuguesa... Nestes preciosos minutos façamos uma curta viagem pela história da matemática em Portugal, com destino na vida e obra de Bento de Jesus Caraça, alentejano, nascido a 18 de Abril de 1901 em Vila Viçosa.

Porque a história da matemática tem "beleza que deslumbra, engenho que encanta e grandeza que assombra..." (Francisco Gomes Teixeira).


1.1. INTRODUÇÃO


A matemática é uma ciência tão antiga como a humanidade. Neste momento, constitui um corpo de conhecimento que se desenvolve há mais de 5.000 anos, com os seus altos e baixos e longe de chegar ao fim. Há autores que afirmam que no passado século XX se criou tanta matemática como em todo o tempo que está para trás, mas tal não teria sido possível se o percurso anterior não tivesse sido percorrido com o trabalho e brilhantismo de tantas pessoas a ela ligadas.


O estudo e conhecimento da história da matemática é sem dúvida importante. Para além de termos a obrigação de prestar homenagem a todos aqueles que contribuíram para o seu desenvolvimento e actuais conhecimentos, muitas vezes ajuda a compreensão e interiorização de alguns conceitos que hoje estudamos depois de arrumados, organizados e formalizados.

Como afirmou José Sebastião e Silva (1914 - 1972), natural da vila alentejana de Mértola, "um ensino que não estimule o espírito e que pelo contrário o obstrua com as clássicas matérias para exame só contribui para produzir máquinas em vez de homens". Ora a história da matemática assume um papel importante no estímulo desse espírito dos alunos e ajuda a que estes se apercebam das ideias que estiveram por trás de certas teorias e resultados, quando estes são apresentados na forma de teoremas já acabados. Já agora, cabe aqui salientar que ainda existem muitas perguntas formuladas há séculos e que continuam à espera de respostas. Um desses domínios é a teoria dos números primos. uns "simples" números naturais!.

Já chega de preliminares, vamos então ao assunto de hoje: uma curta viagem pela história da matemática em Portugal.


2.2. BREVE HISTÓRIA DA MATEMÁTICA EM PORTUGAL


A fundação da nação dá-se em pleno século XII pela mão de D. Afonso Henriques. Nesta época a Península Ibérica estava ocupada por cristãos e por árabes. A ciência, em particular a matemática, estava no lado dos árabes.

Diz-se que o que caracterizava a matemática dos gregos era a sua pureza geométrica, o que caracterizava a matemática indiana era a audácia na álgebra e a matemática árabe seria caracterizada pela junção das duas qualidades anteriores. A ciência dos últimos entrou na Europa quer pela Península Ibérica, quer por Itália, onde no século XIII, a álgebra heleno-indiana foi introduzida por Leonardo Fibonnacci, de Pisa, que estudou
entre os árabes em viagens que realizou ao longo do Mediterrâneo.

Relativamente às Espanhas, um dos centros mais importantes da cultura intelectual árabe da época foi a Escola de Córdoba, enquanto capital do império de Abd Al-Rahman III (891-961), oitavo emir e primeiro califa de Córdoba. Um outro centro importante das escolas andaluzas foi a cidade de Toledo conquistando o título de Mais Alto Centro Medieval de Investigação Astronómica.

Sob o pretexto da evangelização e com a intervenção das cruzadas, a Santa Sé promoveu violentas lutas entre cristãos e não cristãos. Ao perderem, os sarracenos foram obrigados a recuar para terras de África, legando-nos a sua ciência que por sua vez se terá alimentado da cultura e ciência do povo heleno.


O espírito filosófico das ciências da antiguidade foi perdendo peso na passagem dos gregos para os árabes e dos árabes para os judeus, quando os últimos foram invadidos pelos mouros e fugiram para as Espanhas. Também os judeus espalharam riquezas culturais e científicas por toda a nossa Península, que tinham recebido dos árabes, até serem expulsos de Espanha por Isabel-a-Católica e de Portugal por D. Manuel I (Alcochete, 1469 - Lisboa, 1521), duque de Beja, décimo quarto rei de Portugal, pai de D. João III (1502 - 1557, décimo quinto rei de Portugal) e grande impulsionador da expansão ultramarina.

A História da Matemática em Portugal pode ser dividida em cinco períodos:

I.I- De D. Afonso Henriques até D. João II (1455 - 1495) - período da formação.

II.II- Da morte de D. João II até fins do século XVI - período do brilho.

III.III- Do século XVII até meados do século XVIII - período da pobreza.

IV.IV- De meados do século XVIII até meados do
século XIX - reorganização da Universidade de Coimbra pelo Marquês de Pombal
e fundação da Academia das Ciências de Lisboa.

V.V- De meados do século XIX até ao século XX.


2.1 I Período (séculos XII-XV)

Durante a dinastia afonsina, se é verdade que o povo se amotinou contra D. Fernando e Leonor Teles, não é menos verdade que o mesmo povo aclamou e defendeu com heroísmo o Mestre de Aviz. Foi ainda este povo que mais tarde haveria de surpreender o resto do mundo, quando bem dirigido pelo poder vigente. Não se conhecem registos do estudo da matemática em Portugal neste período, sabe-se simplesmente que se usava a numeração romana para contar.

Os grandes acontecimentos deste período terão sido:

- A formação e organização de Portugal.

- O nascimento da Universidade de Coimbra em 1290, no reinado de D. Dinis.

- O nascimento da marinha portuguesa.

- A preparação dos alicerces para o desenvolvimento do conhecimento científico em Portugal.

Enquanto a nossa nação estava com os olhos postos no mar, a vizinha Espanha estava com os olhos postos no céu.


2.2. II Período (séculos XV-XVI)

Talvez o período melhor estudado da história de Portugal e sem dúvida o período do nosso orgulho. O responsável pelo poder era D. Henrique, o Navegador e o fundador da estação naval de Sagres. Dos muitos acontecimentos ocorridos, podem salientar-se os seguintes:

- Início das navegações em alto mar e desenvolvimento de elementos científicos que permitiram tais ousadias: astrolábio, nónio, quadrante, .

- Descoberta da América por Cristóvão Colombo.

- Descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama.

- Descoberta do Brasil por Pedro Álvares Cabral.

- Bartolomeu Dias defronta-se com o Cabo da Boa Esperança.

- Pedro Nunes (1502 - 1578) cria e desenvolve inúmeros ramos da ciência que tem reflexos não só em Portugal como no resto do mundo. De facto, Pedro Nunes, judeu, contemporâneo de Luís de Camões (1524 - 1580), foi cosmógrafo, físico, cosmólogo, geómetra, algebrista e médico. Criou uma nova graduação para o astrolábio que permitia avaliar a altura e distância dos astros em minutos e segundos. Se não inventou, pelo menos aperfeiçoou o nónio (instrumento para avaliar grandezas lineares ou angulares). Inventou um anel graduado em graus, 90 partes iguais, mais eficiente que o quadrante que estava dividido em 45 partes, para determinar latitudes no mar. Nasceu em Alcácer-do-Sal, ensinou D. Sebastião (1554 - 1578, neto de D. João III e décimo sexto rei de Portugal) e morreu logo após a derrota deste, nos areais de Alcácer-Quibir em 4 de Agosto de 1578. A sua obra científica e pedagógica eleva Portugal ao ponto mais alto do conhecimento matemático na Península Ibérica. O seu mérito foi reconhecido ainda em vida pelos monarcas portugueses.

- Portugal cai como nação e passa para o domínio de Castela.

2.3. III Período (séculos XVII-XVIII)

Período de grande actividade na Europa que não foi acompanhada no nosso país. Depois da tragédia de Alcácer-Quibir, sobe ao trono D. Henrique, um inquisidor, um fanático, um decrépito, . uma sombra. Para ajudar a desgraça, sucedem-lhe no trono português três reis castelhanos. Com a revolução de 1640, o trono é ocupado pelo português, D. João IV. Segue-lhe Afonso VI, um louco, depois Pedro II, um imoral, e por fim D. João V, monarca faustoso e pródigo que legou ao seu sucessor D. José I uma nação arruinada.


Enumeram-se em seguida algumas individualidades estrangeiras implicadas em grandes momentos do conhecimento físico-matemático europeu.

- Viete criou a álgebra moderna.

- Kepler e Galileu fizeram descobertas físico-matemáticas.

- Descartes e Fermat, inventaram a Geometria Analítica.

- Newton e Leibnitz inventaram o cálculo dos infinitamente pequenos.

- Newton descobriu a Mecânica Racional.

- Desenvolveram-se os trabalhos de Mac-Laurin, Bernoullis, D' Alembert, Euler, Lagrange, Laplace.

O período de decadência em Portugal poderá ser o reflexo dos factos seguintes, decorridos ao longo do período anterior:

- Êxodo dos judeus no tempo de D. Manuel I.

- Introdução no país do Tribunal do Santo Ofício por D. João III.

- Entrega por D. João III de todo o ensino nacional, incluindo o universitário, ao conservadorismo da Companhia de Jesus recentemente fundada, que não deixou introduzir no país as mais recentes descobertas científicas.

- Descrédito da astrologia.

- Decadência da navegação portuguesa.


2.4. IV Período (séculos XVIII-XIX)

Poucos anos depois de D. José I ter subido ao poder, Portugal está próspero, organizado e disciplinado. A razão deste milagre deve-se ao Ministro Sebastião José de Carvalho, o Marquês de Pombal. Porém, nem tudo o que é belo acaba bem. Morto D. José I, em 1777, o Marquês de Pombal é deposto do poder por D. Maria I, mas a sua obra fica.

Os acontecimentos chave para a matemática foram:

- 1772 - Fundação de uma Faculdade de Matemática na Universidade de Coimbra.

- 1779 - Fundação da Academia das Ciências de Lisboa no reinado de D. Maria I.

- Vida e obra do matemático Monteiro da Rocha (1734, Canavezes - 1819, Ribamar), determinou as órbitas parabólicas dos cometas e previu eclipses do Sol.

- Vida e obra do matemático e poeta José Anastácio da Cunha (1744, Lisboa - 1787, Real Casa Pia do Castelo de São Jorge), desenvolveu e foi pioneiro em alguns aspectos da teoria das séries e da teoria dos números irracionais. Vítima da Inquisição num Auto de Fé do Tribunal do Santo Ofício em 1778, foi acusado de ser racionalista e condenado a três anos de prisão, seguidos de cinco anos de degredo em Évora, não tendo maior pena por não ter feito propaganda das suas ideias.


2.5. V Período (séculos XIX-XX)

Ao abrir o século XIX, Napoleão Bonaparte estava no auge da sua glória. A situação política internacional portuguesa estava perigosa, como se confirmou com a guerra do nosso país contra França e Espanha, coligadas e a perda de Olivença. Napoleão não desistiu à primeira e invadiu Portugal mais duas vezes, mas sem êxito. Na terceira e última invasão juntou-se a nós um exército inglês. Bonaparte pretendia vencer economicamente a Inglaterra e esta temia um bloqueio continental.

No século XX, viveu-se a ditadura de Salazar e de Marcelo Caetano. Existem muitas perseguições, exílios e outros atentados humanos e científicos que em nada terão ajudado o bem-estar das pessoas e o bom desenvolvimento da ciência em Portugal.

Neste período destacam-se os matemáticos:

- Daniel Augusto da Silva (16 de Maio 1814 - 6 de Outubro 1878), natural de Lisboa. Trabalhou na teoria dos binários (forças iguais, paralelas e de sentidos opostos) e outras teorias da Mecânica e teoria dos números. Foi contemporâneo de Mobius e Darboux.

- Bento de Jesus Caraça (18 de Abril 1901 - 25 de Junho 1948), natural da vila alentejana de Vila Viçosa. O homenageado de hoje.

- Ruy Luís Gomes (1905 - 1984), antigo Reitor da Universidade do Porto. Trabalhou conjuntamente com António Aniceto Monteiro. Foi demitido de professor catedrático da Universidade do Porto, perseguido pela PIDE e várias vezes preso. Acabou por abandonar Portugal em 1958 rumo à Argentina, onde estava António Monteiro, seguindo-se o Brasil, Recife, onde se encontravam Zaluar Nunes, Pereira Gomes e José
Morgado. Após o 25 de Abril de 1974, regressa a Portugal e é aclamado Reitor da Universidade do Porto, 27 anos depois de ter sido expulso do ensino universitário.

- António Aniceto Monteiro (1907 - 1980), natural de Mossâmedes, Angola, é afastado pela ditadura em 1945 primeiro para o Brasil, depois para a Argentina. Regressa a Portugal ao fim de 32 anos, em 1977, por um curto período de dois anos, a convite do Instituto Nacional de Investigação Científica e volta para a Argentina onde acaba por falecer. É um dos fundadores da Gazeta da Matemática (1940), da Sociedade Portuguesa de Matemática (1940) e da Junta de Investigação de Matemática no Porto (1943). Contemporâneo de Albert Einstein, foi recomendado por este à Faculdade de Filosofia do Brasil, Rio de Janeiro, onde desenvolveu notáveis iniciativas. Por pressões da Embaixada de Portugal, viu-se obrigado a abandonar o Brasil e caminhar rumo à Argentina. Os seus mais de cinquenta trabalhos são na área da álgebra e da lógica.

- José Sebastião e Silva (12 de Dezembro 1914 - 25 de Maio 1972), natural da vila alentejana de Mértola. Escreveu duas teses para provas de doutoramento, uma de Lógica Matemática e outra de Análise Funcional. A primeira totalmente concebida num período de quatro anos em Itália durante a II Guerra Mundial, a segunda essencialmente escrita no mesmo período, surgiu por receio da anterior não ser aceite em Portugal. Para além de investigador, foi um ilustre pedagogo.


in http://pubol.ipbeja.pt/Artigos/hist.mat.port.htm

pesquisa de João Manuel Mangericão





BIOGRAFIA




Nascido em Angola, em 1907, concluiu a licenciatura em Ciências Matemáticas, na Faculdade de Ciências de Lisboa em 1930 e, como bolseiro da Junta de Educação Nacional (futuro Instituto para a Alta Cultura), doutorou-se na Universidade de Paris em 1936, com uma tese intitulada Sur l'additivité des noyaux de Fredholm, realizada sob a orientação de Maurice Fréchet.

Regressado a Portugal, funda (com Manuel Valadares, Marques da Silva, António da Silveira, Peres de Carvalho e outros) o Núcleo de Matemática, Física e Química, que promoveu vários cursos, conferências e publicações.

No ano seguinte, com a cooperação de Hugo Ribeiro, Silva Paulo e Zaluar Nunes, funda a revista Portugaliae Mathematica, em cujo Primeiro volume (1937) publica a sua tese de doutoramento. Em 1939 cria o Seminário de Análise Geral, que começa por funcionar numa sala da Faculdade de Ciências de Lisboa e depois no Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa, dirigido pelo Prof. Pedro José da Cunha, para «iniciar um grupo de jovens no estudo das matemáticas modernas», grupo esse de que se hão-de destacar Hugo Ribeiro e Sebastião e Silva. Com outros matemáticos, funda em 1940 a Sociedade Portuguesa de Matemática, da qual é eleito primeiro secretário-geral, e, no mesmo ano (com Bento Caraça, J. da Silva Paulo, Hugo Ribeiro e Manuel Zaluar Nunes), a revista Gazeta de Matemática, que pretendia ser «um instrumento de trabalho e um guia para os estudantes de Matemática das escolas Superiores portuguesas ... ».

Estas e outras actividades de António Monteiro tiveram grande eco na Faculdade de Ciências do Porto, em finais dos anos 30, que, por iniciativa de Ruy Luís Gomes, convida António Monteiro para uma série de conferências e lições sobre temas actuais de matemática e outros contactos, de que vem a resultar a criação do Centro de Estudos Matemáticos do Porto (1941) e a Junta de Investigação Matemática (1943), para os quais António Monteiro dá uma colaboração decisiva. Das iniciativas desenvolvidas por António Monteiro durante a sua estada no Porto resultaram os «Cadernos de Análise Geral» («Cadernos de introdução ao estudo das modernas correntes do pensamento matemático, publicados pela Junta de Investigação Matemática»), compreendendo cerca de vinte monografias baseadas em cursos, colóquios e lições realizados em domínios fundamentais, como Álgebra Moderna (dirigido por A. Almeida Costa), Topologia Geral, (António Monteiro), Teoria da Medida e Integração (Ruy Luís Gomes), Geometria das Distâncias (Aureliano de Mira Fernandes) e Teoria das Estruturas e Problemas dos Fundamentos (Hugo Ribeiro).

Em todo este tempo (1938-43» António Monteiro vive de lições particulares, de um trabalho remunerado no Serviço de Inventariação da Bibliografia Científica, criado pelo instituto para a Alta Cultura, e de uma dotação aquando da sua estada no Porto. A universidade portuguesa fechava-lhe as portas, enquanto a Universidade de Filosofia do Brasil (Rio de Janeiro) o convidava para a cátedra de Análise Superior, sob recomendação de A. Einstein, J. Von Neumann e Guido Beck.

Em 1945 parte para o Brasil e uns anos mais tarde instala-se na Argentina. A sua acção nestes países é relatada no vol. 39 (1980) da Portugaliae Mathematica que lhe é dedicado, e aí publica o seu último trabalho, a memória Sur les Algèbre, de Heyting Symétriques, premiada em 1978 pela Fundação Calouste Gulbenkian e redigida durante a sua única estada em Portugal (1977-79) depois do exílio.

A obra científica de António Monteiro compreende mais de 50 trabalhos de investigação, na maioria versando sobre álgebras de lógicas não clássicas, assunto este em que foi um dos pioneiros e lhe granjeou reputação internacional e muitos discípulos. A sua produtividade, até ao fim da vida, é um dos raros casos no panorama matemático. Em carta a Pereira Gomes (31 de Maio de 1979) escreve: «Comecei de novo a levantar-me às 4 ou 5 da manhã para trabalhar. São tão lindos os temas sobre os quais estou trabalhando ... ».

Faleceu em Babia Blanca, na Argentina, em 29 de Outubro de 1980.


in http://www.eb23-sta-clara-guarda.rcts.pt/monteiro.htm ac.22.08.2006


pesquisa de Admário Costa Lindo

20 de agosto de 2006

Baía dos Tigres. do nome

O texto que se segue resulta da colagem de excertos de uma conversa virtual mantida no sítio SanzalAngola, no fórum Que se Passa? » Cultura Angolense, entre 19 de Abril e 10 de Maio de 2005.

http://www.sanzalangola.com/forum/thread.php?threadid=9202&sid= ac. 20.08.2006


Tomás Gavino, 19.04.2005:

Eu tenho várias dúvidas, mas há uma que me vem perseguindo há algum tempo: existem diversos escritores, angolanos ou não, desde Cadornega a Óscar Ribas, a Manuel Pacavira, e mais, que mencionam LOBOS nas matas angolanas! Lobos!!!

Óscar Ribas, por exemplo, ao mesmo tempo que fala de lobos, fala também de hienas, mabecos e chacais, por isso sabe bem do que está a falar!
Manuel Pacavira é um escritor actual, angolano, que não pode desconhecer que em Angola nunca houve lobos!

Ou será que houve?



Campos de Camacupa, 19.04.2005:

Essa de lobos em Angola faz lembrar uma mais antiga de Alexandre Dumas que num conto infantil também localizou tigres precisamente em Angola...



Campos de Camacupa, 21.04.2005:

Eu não sabia que Cadornega também havia localizado tigres em Angola, mas li um dia há muitos anos a passagem do pequeno livro infantil de Dumas em francês onde ele descreve as aventuras de um navegador que chega à costa de Angola e avista os ditos tigres.


Admário Costa Lindo, 22.04.2005:

"O tigre começou há 500.000 anos a evoluir lentamente para a sua forma actual. Durante a migração em direcção às regiões mais quentes, adaptou-se progressivamente aos novos habitats. O caminho para sul conduziu-o para as florestas tropicais e para as ilhas do Sudoeste Asiático até à Manchúria, à Coreia do Sul, à China e ao Vietname..." (1)

Os pontos mais a sul do Equador atingidos pelos tigres foram as ilhas de Samatra e Java.

Os estudos efectuados permitem concluir a existência de 8 subespécies de tigre:

Tigre-real ou tigre-de-bengala, Panthera tigris tigris, "vive nas florestas tropicais húmidas de Assam ou de Bengala, mas também nas florestas pantanosas do Sudoeste e do Norte da Índia, bom como nas do delta do Ganges. Também vive nas regiões de altitude, na vegetação alpina e nas florestas de folha caduca do Nepal, na região dos Himalaias. Encontra-se ainda nas florestas de bambu da Índia Central, nas savanas e bosques da região do Terai e na floresta mista seca chamada monsónica (árvores de folha perene e árvores de folha caduca), na Índia Setentrional." (1)

Tigre-da-indochina, P. t. Corbetti, "vive nas florestas densas da Birmânia e nas florestas e savanas da Indochina."

Tigre-da-china, P. t. Amoyensis, "vive nas savanas, nas florestas de carvalhos e de choupos e nas montanhas da China Central e Ocidental, cobertas de carvalhos, de coníferas e de fetos arbóreos."

Tigre-do-cáspio, P. t. virgata, extinto desde meados do séc. XX, vivia nas "zonas de aluvião ao longo das margens dos rios, coberta de árvores ou de arbustos, hoje completamente destruída. No Irão habitava nas encostas das colinas, protegido pela vegetação densa."

Tigre-da-sibéria, P. t. altaica, "encontra-se nas florestas boreais (carvalhos e coníferas)."

Tigre-de-samatra, P. t. sumatrae, "vive na floresta tropical húmida da ilha de Samatra, exuberante de palmeiras, lianas, orquídeas, arbustos e árvores de grande porte."

Tigre-de-Java, P. t. sondaica e Tigre-do-bali, P. t. balica, hoje extintos, viviam no mesmo habitat do tigre-de-samatra.

Os Tigres Brancos não pertencem a nenhuma subespécie, são antes uma variedade do tigre-de-bengala. ""A cor branca é devida a um carácter recessivo do património genético, que se torna carácter dominante - e portanto manifesta-se - quando ambos os progenitores são portadores deste género "mutante" responsável pela cor."" (1)

Tudo isto serve para afirmar que o habitat do tigre se situa bem longe de Angola.

Se escritores, navegadores ou mesmo cientistas deixaram em escritos a presença deste felídeo em terras angolanas só pode ter sido por descuido ou estupidez. E eu digo o porquê da "estupidez":

É certo e sabido que dezenas se não centenas de exploradores, navegadores e mesmo cientistas, todos eles imbuídos de objectivos científicos, fossem eles quais fossem, passaram ao lado da soberba Welwitschia mirabilis, uma planta que, pelas suas dimensões, não pode passar despercebida. Pois dela ninguém deu notícia até Frederico Welwitsch a descobrir, EM MEADOS DO SÉC. XIX.

Descuidos como estes podem provocar hilaridade, hoje em dia, mas são irreparáveis. Ao ponto de ninguém, com poder para tal, se sentir motivado para reparar erros históricos.
Um dos casos é Baía dos Tigres

Baía dos Tigres é um topónimo que não tem sentido nenhum, nem mesmo histórico, uma vez que, como vimos acima, nunca houve tigres em Angola. O motivo da sua manutenção nem é, sequer, nostálgico, uma vez que inúmeros topónimos angolanos se alteraram após a independência.

Porque será que Diogo Cão e os seus marinheiros enviaram tal nome para o futuro?

Se nos dermos ao trabalho de seguir a descrição que Pedro Rosa Mendes faz daquela baía (numa viagem que iniciou em 1997, descrita em livro e que tentava reconstituir a célebre De Angola à Contracosta de Capelo e Ivens) estaremos assim tão longe daquilo que os marinheiros então avistaram?

"A Baía tornou-se uma ilha quando faltou a água. Houve um tempo em que o mundo tocou lá com uma ponta de asfalto. Tudo mudou quando as casas perderam os donos. As marés venceram a estrada e separaram do continente esse punhado de areias. Ninguém mais voltou à ilha ... Para trás ficaram os cães domésticos. A insularidade apagou-lhes todos os reflexos não exigidos pela luta como sobrevivência. As gerações seguintes nasceram em doses crescentes de raiva e embrutecimento ... Aves migratórias com ninho estrangeiro, cardumes reflectidos no luar, lacraus prontos a ferrar a dor, cactos de espinhos: a nada conseguiam chegar, cão come cão, cão mata enquanto não morre. Os cães eram os únicos mamíferos na ilha mas perderam finalmente a memória do amamentar... A Baía é uma praia farpada a medo. Diz-se que os cães comem gente e gente não apura a verdade. Os tigres são isto." (2)



Tomás Gavino, 24.04.2005:

BAÍA DOS TIGRES
Que tigres? Seriam tigres marinhos, do tipo leão marinho?
Pode ser...

Se não, qual a origem do nome?



Saparalo (Orlando Salvador), 24.04.2005:

Quanto à nossa Baia dos Tigres, a versão mais lógica e constante em várias publicações históricas é a de que os navegadores que passavam ao largo da grande baia com rota a outros destinos viam de longe , na costa , umas listas escuras nas areias "dunas" que eram sombras sobre o deserto.
De muito longe pareciam peles de tigres, e daí referenciarem aquela área como a Baia dos Tigres.

Há uma outra versão ligada ao facto de terem existido há muitos, muitos anos, na praia, muitos cães grandes e que bebiam a finíssima película de agua doce que o mar tinha. Os cães seriam bravos, mas não liga muito bem esta versão. A outra, sim, é narrada pelos antigos navegadores nas descrições das suas viagens.



Admário Costa Lindo, 26.04.2005:

Como já aventei anteriormente o topónimo Baía dos Tigres (ou S. Martinho dos Tigres, em memória do seu padroeiro) deriva de um "erro histórico irreversível". Porque nunca houve tigres em África, tampouco em Angola.

É certo que as hipóteses avançadas pelos historiadores procuram encontrar uma explicação para a origem do nome. Como diz o caro confrade Orlando Salvador, "umas listas escuras nas areias que eram sombras sobre o deserto" e que "de muito longe pareciam peles de tigres" é uma dessas hipóteses. Mas não tem consistência por aí além, penso eu.

Confundir sombras das dunas com peles de tigres é um tanto surrealista. Ou talvez não! Mas os marinheiros de então não tinham conhecimento preciso do aspecto de um tigre.
Estamos no séc. XV. ""No séc. III a.C., um general de Alexandre apresentou aos Atenienses o primeiro tigre que foi visto na Europa... Depois da queda do Império Romano, a recordação da espécie desapareceu a tal ponto que, no séc. XIII, Marco Pólo se mostrou muito surpreendido com este "GRANDE LEÃO", com uma soberba pelagem às riscas pretas, que descobrira na corte do imperador mongol Kublay Kham."" (1)

A Baía em causa não era, nem é, tão insignificante que os marinheiros a baptizassem apenas por a terem avistado "de muito longe". Com efeito, "a capacidade em navios fundeados é de 114 para Luanda, de 70 para o Lobito, de 66 para Moçamedes e de 136 para Porto Alexandre, enquanto na Baía dos Tigres podem estar fundeados 5.427!" (3)
A importância desta baía foi tal para os navegadores portugueses que ""Bartolomeu Dias partiu de Lisboa a finais de Agosto de 1487, comandando uma esquadra de três navios, dos quais, dois eram caravelas e o terceiro, uma "naveta" com mantimentos, destinada a ficar em lugar seguro, algures na costa africana... Até esta viagem, não temos notícia que se tenha tomado uma medida semelhante e a circunstância em si não pode deixar de ser significativa de um receio ou apreensão acerca do que aguardava os marinheiros para além daquelas paragens... o local escolhido foi a baía dos Tigres..."" (4)
Isto atesta o franco conhecimento que os marinheiros tinham da baía, que não poderia ter sido adquirido apenas vendo-a "de muito longe".

Resta-nos tentar descobrir que animais teriam eles visto, efectivamente, in loco.

Na província do Namibe "entre os felinos, além das pequenas espécies como o gato selvagem - Geneta felina (a) - e o lince - Felis caracal (b) - temos o chamado rei dos animais, o celebrado leão - Felis leo (c) - animal consagrado como símbolo da força... Circulam por toda a região duas espécies de leopardos - Felis pardus (d) e Cinaelurus jubatus (e) - aos quais, erradamente, MUITOS CHAMAM ONÇAS OU TRIGRES, animais do oriente, que não habitam no continente africano... São vulgares as hienas, - Hyaena brunnea e Hyaena crocuta - e os cães selvagens ou mabecos - Lycaon pictus - animais de grande ferocidade quando em matilhas..." (6)

Seriam então leopardos? Ou chitas?

A versão dos cães não liga tão mal assim. É que os canídeos e a Baía dos Tigres estão intimamente (ou umbilicalmente?) ligados. Veja-se o que nos diz Henrique Abranches:

[ o excerto que se segue, da obra de Abranches atrás referida, sobre a ancestral ligação entre Baía dos Tigres e os cães, não foi, por lapso, incluída no fórum]

“Pedro Mbala sabia dos cães. Muita gente ouvira falar, de maneira mais ou menos vaga, sobre esses bizarros cães da Baía dos Tigres. Contavam-se versões diversas. Uma delas referia que no século XVIII um navio ainda não identificado naufragara ao largo dos Tigres. Os cães, aparentemente de várias raças, vinham a bordo e foram os únicos sobreviventes. Nadaram para a costa, encontraram um habitat duro e pobre, mas sem alternativa. Adaptaram-se a ele comendo principalmente o peixe morto que vinha dar à praia, ou as ovas de peixe tão abundantes que por vezes tingiam as águas da baía de um tom laranja; outras vezes caçavam raposas, perseguiam as aves marinhas com técnicas de guerrilha, dois atrás, pés na água, e um pela frente impedindo a vítima de tomar velocidade para levantar voo, ou ainda banqueteando-se com um ou outro cachalote, vindo misteriosamente acabar os seus dias no saco da baía que, a avaliar pelos enormes maxilares e costelas ósseas espalhados pela praia, parecia ser um cemitério consagrado pelos cetáceos. Uma outra versão contava que em tempos recuados instalara-se em Moçamedes uma epidemia de raiva e a Administração ordenara a morte de todos os cães. Mas algumas pessoas, apiedadas dos animais, meteram-nos a bordo de uma barcaça e rumaram para o Sul para os deixar em qualquer praia, bem longe, mas em vida. Foi assim de desembarcaram os seus invulgares passageiros na Baía dos Tigres. Contudo não havia por lá nenhuma nascente, nenhum curso de água, mas esses admiráveis animais aprenderam depressa que a espuma das ondinhas que molhavam o areal não era salgada e, nos longos marasmos do vento, a água inerte com um espelho, lambiam a superfície que também não tinha sal. Nesse ambiente cruel, aprenderam a viver e multiplicaram-se, tornando-se eles próprios tão cruéis como o meio.” (5)

Mas atendo-nos apenas ao relato de Pedro Rosa Mendes substituamos os cães por mabecos (também canídeos). Para quem, como os navegadores do séc. XV, ouviu falar em tigres mas nunca os viu e jamais viu ou ouviu sequer pronunciar o nome dos mabecos, as manchas ou malhas destes não poderão equivaler a listas?



Tomás Gavino, 26.04.2005:

E se foram avistados tubarões-tigre?
Também não é uma hipótese de descartar, julgo.



Admário Costa Lindo, 10.05.2005:

Na minha última aquisição bibliográfica descobri um novo facto histórico.

Os historiadores dos Descobrimentos (e não só) referenciam os lugares geográficos, regra geral, apresentando os topónimos arcaico e moderno (caso exista).

Para nos mantermos na região em questão:

Angra das Aldeias = Porto Alexandre
Angra dos Negros = Moçamedes.

Eu já tinha notado que a Baía dos Tigres não tinha designação arcaica, ou melhor, que a designação sempre fora a mesma. Mas daí nunca tirei qualquer ilação. Não é caso único.

Engano redondo! O que descobri deixou-me banzado!

"... Diogo Cão, ultrapassando o cabo do Lobo, deteve-se no cabo Negro, onde colocou o seu 3º padrão, em 16 de Janeiro de 1485 (ou 1486); e cabo Negro, porque o monte, na costa, rodeado de areia, cobria-se de mato raso, que o escurecia. A região era quase deserta.
A seguir, a armada fundeou na angra das Aldeias (Porto Alexandre), assim classificada em virtude das duas aldeias indígenas ali encontradas, cujos habitantes se dedicavam à pesca. Depois, descendo mais abaixo, o navegador entrou na Manga das Areias (Baía dos Tigres) , com duas léguas na largura da boca, estendendo-se cinco ou seis, pela terra dentro, e com 12 a 15 braças de fundo. Também aqui o peixe era a riqueza exclusiva. Os negros mantinham-se com ele e construíam abrigos com costelas de baleias que davam à costa e com seba [A] do mar. Tudo o mais era areal confrangedor, desprovido de água, enquanto a navegação era difícil e perigosa, fora da reentrância grandiosa e acolhedora." (7)

Bem remoída a questão da existência de uma designação anterior, Manga das Areias , fácil é concluir que o topónimo Baía dos Tigres é posterior à Descoberta e não foi o topónimo escolhido pelos navegadores.

Sem esforço de maior também se conclui que a tese das "riscas formadas por sombras nas dunas, observadas de longe pelos navegadores", passa para a secção das lendas, ou para as calendas gregas.

Fica de pé, portanto, a hipótese da fauna mamífera encontrada, resultante de observação directa. Sobre isto nada tenho a acrescentar ao que já foi dito (até ver!!!).



colagem da responsabilidade de
admário costa lindo

notas

(A) Algas

taxonomia actual:
(a) na verdade uma gineta, Nandinia binotata
(b) também conhecido por caracal ou lince-caracal
(c) Panthera leo
(d) Panthera pardus
(e) Acinonyx jubatus , a chita.

bibliografia citada:
(1) MADIER, Monique; Christine Sourd, Thérèse de Cherisey, Sylviane Debus e. O Tigre , in Vida Selvagem, Animais da Floresta Tropical-1 , Selecções do Reader's Digest, Lisboa, 1995

(2) MENDES, Pedro Rosa. Baía dos Tigres , Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999

(3) TEIXEIRA, Pimentel. Breve Notícia, in Semanário "O Sul de Angola", Número Comemorativo do Centenário da Fundação de Moçamedes, Moçamedes, 04.08.1949

(4) MATOS, J. Semedo de. A Marinha Joaninha , in Revista da Marinha, Junho de 1999, http://www.marinha.pt/extra/revista

(5)
ABRANCHES, Henrique. Os Senhores do Areal , Campos das Letras, Porto, 1998.

(6) TEIXEIRA, Pimentel. Animais da Selva, in Semanário "O Sul de Angola", Número Comemorativo do Centenário da Fundação de Moçamedes, Moçamedes, 04.08.1949.

(7) DELGADO, Ralph. História de Angola, Primeiro Período e Parte do Segundo 1482 a 1607 , 1º volume, edição do Banco de Angola, s/data e nº de edição. (inclui "Introdução da primeira edição", com data de 30/06/1946), pg. 68.

27 de julho de 2006

Recordações e Retalhos I



Agradecimento

A publicação destas memórias só foi possível devido à prestimosa colaboração de Albano Júnior, dirigente da ADIMO – Amigos do Distrito de Moçamedes, que nos facultou o acesso ao texto que passamos a publicar.
Os nossos penhorados agradecimentos.

Admário Costa Lindo


Nota Prévia

Este texto foi escrito pela sua própria mão, já depois do nosso pai ter sofrido uma trombose, razão pela qual, devido ao seu tamanho e pormenores, foi necessário um esforço muito grande de memória e muita força de vontade para o concluir. Por isso, o recordamos sempre como uma pessoa inteligente (e culta apesar da sua pouca instrução), dinâmica e persistente.

O nosso pai veio a falecer com 78 anos de idade, no dia 25 de Setembro de 1991, ou seja, 7 dias depois de ser atropelado por um camião do lixo, numa passadeira para peões, perto do nosso bar da praia, em Quarteira. Veio a provar-se em Tribunal que o condutor da referida viatura se encontrava alcoolizado no momento do acidente. Mas nós não quisemos complicar a vida desse homem em Tribunal, visto que era um pobre coitado e nada mais interessava, agora que o nosso
pai estava morto. A Câmara pagou uma quantia ridícula como indemnização pela sua morte.

Esta transcrição serve apenas como recordação para a família e amigos mais chegados, daquele que foi, tal qual o seu pai (nosso avô) um trabalhador incansável, um bom marido, bom pai e grande amigo.

Os filhos


notas:
Bordão
Cacimba
Corvina
Vapor

1 de junho de 2006

Relembrando Porto Alexandre III



RELEMBRANDO GENTE DE PORTO ALEXANDRE

por Alfredo Baeta Garcia

Parte III





Para além da população permanente que vivia, toda ela, directa ou indirectamente a pesca, havia o funcionalismo público, próprio de um concelho equipado com todos os serviços normais como Correios, Repartição da Fazenda Pública, Administração, Alfândega, Delegação Marítima, Delegação de Saúde e Hospital, Junta de Exportação, Florestas e Protecção das Dunas e Pároco da Freguesia, cujo patrono era S. Pedro.

As pessoas aqui lembradas teriam, eventualemente, algumas particularidades que, então, as marcassem para ainda estram presentes na minha memória. Dos restantes, que eram o maior número, ainda retenho a lembrança de muitos, mas sem a mesma nitidez e por isso não cabem numa relação que não é um recenseamento da população de Porto Alexandre na década de quarenta.

Todos se encaixavam, melhor ou pior, neste meio social muito característico que já ia na terceira geração aqui nascida, descendentes dos primeiros pescadores algarvios de Olhão que vieram para estas praias. Havia no entanto uma “classe” que não pode deixar de ser referida, a dos agiotas que praticavam juros de enforcado e a que eu recorri por mais de uma vez. Em Porto Alexandre era muito pequena, mas numerosa em Moçamedes, simbolizada pelo Passa Fome. Ao fim e ao cabo era o resultado de o dinheiro do Banco de Angola não ser para emprestar aos industriais de pesca, mas apenas aos comerciantes.

Pessoas houve que, não tendo relações familiares, exerceram grande influência no seu tempo e foram altamente consideradas, de que é exemplo o meu conterrâneo José de Matos Garcia que, para além de grande industrial em Porto Alexandre, foi presidente da Câmara Municipal de Moçamedes e presidente do Sindicato de Pesca do Distrito de Moçamedes, sendo um dos homens mais destacados do seu tempo, tanto em Porto Alexandre como em Moçamedes.

Uma relação desta natureza ficaria incompleta se não fizesse referência à população negra permanente, que era muito reduzida, pois a grande maioria era eventual e constituída pelos chamados Munanos, vindos contratados dos planaltos do Sul e dos Ganguelas. A essa população permanente chamavam Quimbares, supostamente de várias origens, talvez alguns Curocas, rio cujo vale tinha condições mínimas de habitabilidade e ficava próximo da Vila.

Dos homens ainda recordo alguns:

SANGOLAR, mestre de uma canoa de pesca à linha do Tomé Tendinha;

CANGÚIA, também mestre e proprietário de uma canoa cuja mulher, a Beatriz, ainda era viva quando de lá saí;

MACUíCA, contra-mestre de uma sacada da Conserveira, cujo mestre era o Américo Silva ou Juventino Graça;

CARECA, motorita de uma enviada da Conserveira;

JOSÉ REPUBLICANO [1], assim chamado por ter nascido no dia 5 de Outubro de 1910, pescador e parece que ainda era vivo por volta de 1994;

CÉSAR, serralheiro da Conserveira, um grande artista na sua profissão, saído da grande escola que foi, no seu tempo, a Companhia do Sula de Angola;

CARLOS, também serralheiro da Parceria de Pesca;

JOSÉ CHIRULO, caixotero da Conserveira;

DOMINGOS MUCUBAL, ajudante na camionagem de Sousa & Irmão, foi o único elemento da sua etnia que conheci com hábitos de assimilado;

TALAMUCA, pisteiro dos caçarretas da região;

MATEUS, suponho que era Curoca e grande fumador de cangnha;

CHICO, servente da Pensão do Chico da Conceição – Cardoso;

AUGUSTO, mestre do galeão Vissonga;

VELHO, cozinheiro da Messe do Pessoa.

Das mulheres lembro mais nomes e imagens do que dos homens, tais como:

HELENA COMBOIO, que era uma bonita rapariga;

ANTÓNIA, que era ligeiramente cambaia;

DOMINGAS, certamente Curoca e que foi minha lavadeira durante muito tempo;

CAQUINDA, filha do Republicano, que lhe deu uma tareia por ela andar metida com brancos;

CLARISSE, afilhada do Celestino Carvalho que a mulher criou até rapariga;

SEGUNDA GORDA, que na altura já era mulher de certa idade;

CÂMIA, que era zarolha e me deu uma lição de comportamento;

DOMINGAS CANHÓNHÓ, vivia com o João Nunes Cardoso, gerente da pensão do Chico da Conceição, então a única da terra;

GUÉU, tia da Helena Comboio e que viveu com o velho Beja carpinteiro;

JÚLIA, enlatadeira da Conserveira;

JÚLIA, mulher de um pescador quimbare;

CANGO, que esteve presa durante uns meses na Baía dos Tigres por problemas com o Chico da Conceição;

CACHOPA, criada de miúda em casa da Cândida Trocado;

EUGÉNIA ZAROLHA, lavadeira;

MARIAZINHA, filha da Coxa curoca, sogra de um Barreto, era servente da D. Maria Luísa Arrobas da Silva; tinha uma irmã chamada Chitenga;

CATCHAFO, que veio com um contratado Cuanhama e depois por lá ficou;

PALMIRA DO SANTANA, que substituiu a D. Virgínia Maló como chefe das enlatadeiras da Conserveira;

CHICA, filha de um Francisco do Norte, aqui a cumprir pena em liberdade;

CREMILDE, mestiça, enlatadeira do Patrício Correia;

SEGUNDA, filha da Segunda Gorda;

ADELINA, afilhada da D. Adelina do Manuel do Motor;

Em Moçamedes lembro-me da GENINHA, filha do Quarenta Raios; a LAURA HÚMIDA, que foi para Benguela.

Dos Quimbares, homens e mulheres, tenho ideia vaga de outros mais que não consigo localizar, nem pelos nomes nem por outros pormenores.

Todos estes nomes são hoje figuras anónimas que pouquíssimas pessoas cnseguirão retirar desse anonimato, situação agravada com as condições que osa mortos e os vivos tiveram de sujeitar-se no final de uma época que acabou em morte violenta.


NR
[1] Seria, mais tarde, o Regedor de Porto Alexandre.


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Relembrando Porto Alexandre V



RELEMBRANDO GENTE DE PORTO ALEXANDRE

por Alfredo Baeta Garcia

Parte V




MEMÓRIA DA CONSERVEIRA


A Conserveira do Sul de Angola, Lda, que desenvolve a sua actividade especialmente no sector da pesca e sua indústria transformadora, com instalações para o efeito em Porto Alexandre, foi fundada na década de 30 pelos Srs. Dr. Torres Garcia, José de Matos Garcia, Costa Santos, Dr. Carvalho Santos e Prof. Manuel da Piedade Martins. As cotas eram de 50 contos cada uma, excepto as do Dr. Carvalho Santos e Prof. Martins, que eram de 25 contos cada.

Desde muito cedo alguns sócios foram ficando pelo caminho, sendo primeiro o Dr. Carvalho Santos, por nunca ter realizado o capital que subscreveu, seguindo-se Costa Santos, industrial em Moçamedes, cuja cota foi comprada pela Conserveira em tribunal, devido à sua situação económica muito difícil. Anos depois, por volta de 1945, os herdeiros do Dr. Torres Garcia vendem a sua parte à empresa ficando, a partir daí, apenas dois sócios, Matos Garcia e Prof. Martins, o primeiro com o dobro do capital e o único que tinha poderes de gerência, expressos na escritura de constituição, mas que podiam ser concedidos a terceiros por procuração.

Por essa altura o sócio Matos Garcia fixa residência em Lisboa e monta um escritório que efectua a compra das mercadorias a enviar para Moçamedes, onde se pretende desenvolver a parte comercial da empresa e promove a venda das conservas.

Ao mesmo tempo o Prof. Martins muda a sua residência para Moçamedes e abre-se um armazém, no qual também passa a funcionar o escritório, onde fica centralizada toda a escrita, ficando em Porto Alexandre uma pequena secção para controlo e elaboração de elementos contabilísticos elementares.

O Prof. Martins, que até aí agia sob uma espécie de tutela, deu-se a tomar decisões que estiveram na origem do desentendimento que levou à saída do sócio Matos Garcia, que acabou por vender a sua posição aos novos sócios, Gaspar Madeira e Lourdino Tendinha.

No período compreendido entre 1943 e 1950, em que fui seu empregado, A Conserveira era, sem dúvida, a empresa mais importante do distrito de Moçamedes e pioneira em algumas actividades.

A partir desta última data, que coincide com a saída do sócio Matos Garcia, a empresa entra em dificuldades resultantes de más administrações, que a levam à falência e ao seu puro e simples desaparecimento na época de maior desenvolvimento e prosperidade destas actividades em todo o litoral Sul de Angola.

Nesta época a empresa era constituída pelas seguintes actividades e suas diferentes modalidades, todas instaladas em Porto Alexandre, com excepção do escritório e armazém em Moçamedes e escritório em Lisboa:

PESCA
Uma traineira, a Diogo Cão, que foi a primeira embarcação deste tipo matriculada na Delegação Marítima de Porto Alexandre e a pescar na sua zona. Tinha uma capacidade de cerca de Vinte Toneladas de carga;
Duas sacadas, sendo uma motorizada e outra à vela;
Uma armação à Valenciana simples.

FÁBRICA DE FARINHA E ÓLEO
Fábrica mecânica, a partir do que antes fora uma rudimentar bateria de prensas manuais e dois caldeirões para cozedura, incluindo um secador rotativo para guano, que era novidade na época e que nunca foi posto a funcionar; uma prensa manual Marmonier.
Esta fábrica foi construída em Lisboa pela firma Alfredo Alves, sob licença Norueguesa da “Myrnes?”

FÁBRICA DE CONSERVAS
A primeira a ser instalada em Porto Alexandre, com autonomia de laboração, por não ser possível de outro modo, com algo de primitivo em comparação com as suas congéneres metropolitanas de então, mas que seria, na altura, a segunda de Angola. Dedicava-se quase exclusivamente ao atum e subsidiariamente a sarrajão, filetes de cavala e outras variedades de pequena monta.

SALGA E SECA
Tradicional e de média capacidade em relação ao volume de pescado, pois a sua grande maioria destinava-se a farinação.

TRANSPORTES
Um galeão à vela, Vissonga, depois Vouga, para transportes entre Moçamedes e Porto Alexandre, principalmente de lenha;
Uma barcaça;
Uma camioneta de carga para transportes diversos;
Duas pontes em Porto Alexandre, principalmente para descarga de peixe.

OFICINA DE SERRALHARIA
Para apoio a todas as secções.

ESTALEIRO NAVAL
Construção e reparação de barcos de pesca e respectiva carreira para esses fins.

ENFERMAGEM
Instalada sob pressão do então Delegado de Saúde, Dr. Araújo de Freitas.

COMÉRCIO
Estabelecimento de comércio geral, desde fazendas, mercearias, ferragens e artigos de pesca e que durante algum tempo foi o melhor da Vila.
Um armazém em Moçamedes, em edifício próprio, para recepção e distribuição de mercadorias importadas para embarque a partir deste porto, pois os navios de carreira não escalavam Porto Alexandre, a não ser para carregar grandes tonelagens, como farinha e óleos.

ESCRITÓRIO
Em Moçamedes a partir de certa altura, com uma secção em Porto Alexandre, outra em Lisboa, especialmente para compra de mercadorias e venda de conservas, como já foi dito.
Na impossibilidade óbvia de citar números referentes ao movimento da empresa, passo, no entanto, a citá-los no que se refere aos empregados, pretos e brancos, estes até pelos seus nomes que ainda recordo, na sua grande maioria.

Entretanto a empresa instala, em terreno superiormente indicado para o efeito e fora da área das suas actividades tradicionais:

KARAKUL
Com alguns carneiros importados de contrabando da África do Sul, uma exploração para obtenção de peles de que não chegou a tirar-se grande resultado, como aliás aconteceu com todos, e muitos foram, os que tentaram essa actividade.


ORGANOGRAMA
[ clicar nos gráficos para aumentar ]

Pesca


Fábricas / Salga e Seca



Outros



Resumo do Pessoal

86 contratados pretos
a que normalmente se juntava um pequeno número de mucubais, nunca mais de dez, que trabalhavam exclusivamente na secagem de peixe;

41 europeus

4 quimbares


Era normal a entreajuda das várias secções, feita pelo pessoal contratado, com um horário de trabalho muito alargado e, mesmo assim, com grandes dificuldades, de que se ressentia principalmente a secção de Salga e Seca que, por este facto, teve desde sempre fraca capacidade de produção.

Não se fazem referências ao KARAKUL, pois nunca tive qualquer ligação com essa secção. Apenas lá fui uma vez, de visita, a mais de 200 quilómetros de Porto Alexandre, relativamente perto do sopé da serra da Chela, no caminho para o Lubango (Sá da Bandeira).

O pessoal aqui indicado refere-se exclusivamente ao período que vai de meados de 1943 a 1950.


Fim

Relembrando Porto Alexandre IV



RELEMBRANDO GENTE DE PORTO ALEXANDRE

por Alfredo Baeta Garcia

Parte IV


Finalmente cumpre referir três instituições com valores e influências diferentes no meio social e económico alexandrense:

CLUBE RECREATIVO ALEXANDRENSE
Implantado num velho edifício no centro da Vila, era o local onde se realizavam todas as manifestações sócio-culturais, tais como frequentes bailaricos, reuniões de qualquer natureza e salas de jogos para "batota" quer a dinheiro, quer a maços de cigarros a que não faltavam clientes, especialmente entre as cinco horas da tarde e a hora de jantar. Foi também o local onde, pela primeira vez, se realizaram sessões regulares de cinema. Possuía uma Guiga para regatas a remos, que nunca vi em cima de água e deve ter acabado carcomida.

INDEPENDENTE DE PORTO ALEXANDRE
Clube cuja finalidade era o desporto mas que, nesse tempo, não ia além das intenções, pois não tinha quaisquer instalações para o efeito. Por volta de 1953 adaptou um areal nas traseiras da antiga Delegação Marítima a campo de futebol. Muitos anos mais tarde veio a Ter uma das principais equipas dessa modalidade em Angola chegando, pelo menos uma vez, a disputar a Taça de Portugal.

SINDICATO DE PESCA, depois GRÉMIO DOS INDUSTRIAIS DE PESCA
Foi fundado em 1932 por iniciativa do meu conterrâneo Dr. António Alberto Torres Garcia, sendo de longe a maior obra sócio-económica do Distrito, se não mesmo de toda a colónia de Angola, vindo Benguela, anos depois, a seguir o exemplo, pois veio organizar a indústria de peixe seco e posteriormente a de farinhas e óleos de peixe, que até àquela data vegetavam ao sabor dos interesses de aventureiros e oportunistas à custa dos pequenos industriais de pesca.
A importância deste organismo foi de tal maneira válida que as suas estruturas iniciais se mantiveram inalteradas, no fundamental, até ao fim, até 1975 e parece que mesmo para além dessa data.
A sua secção local era a maior do Distrito, instalada em amplos e modernos armazéns servidos pela maior ponte-cais, onde atracavam as embarcações de cabotagem de toda a costa e Congos.
Infelizmente esta época não produziu nenhum cronista local com a capacidade para fazer a história dos últimos setenta anos com a dignidade e a arte que merece. A única coisa que conheço em relação a Porto Alexandre é o belíssimo conto de Bobela Motta – Conflitos de Jurisdição – que é muito pouco.




RELAÇÃO DOS ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS EXISTENTES EM PORTO ALEXANDRE EM FINAIS DE 1943

1 Francisco da Conceição
2 António Trocado
3 Albérico Sampaio
4 Adérito Sanches
5 Francisco Carvalho
6 Tavares (Andrade & Abano ?)
7 Carlos Pessoa
8 Vergílio Peleira
9 Conserveira
10 Sul Angolana
11 Parceria de Pesca
12 Tomé Tendinha
13 Andrade & Abano
14 Guimbra
15 Viúva Tavares
16 Antunes da Cunha
17 Sena & Ribeiro

2 de abril de 2006

Relembrando Porto Alexandre II

RELEMBRANDO GENTE DE PORTO ALEXANDRE

por Alfredo Baeta Garcia

Parte II



COIMBRAS
De Alpiarça, eram três irmãos: o Fernando, da firma Coimbra & Silva, veio ultimamente a ser meu sócio na Lusitana; o João, que antes foi chauffeur do Sindicato e depois sócio da firma Andrade & Abano; o mais novo, o Rogério, foi motorista da Câmara de Luanda.

GUIMBRA
De Matosinhos, tinha uma tasca a confinar com o perímetro florestal das dunas e viveu sempre pobremente.

CHICO BATISTA
Da Nazaré e mandador da armação do Portela. Também tinha uma canoa tripulada por quimbares. O Batista dos atunzinhos, como ele chamava ao atum.

JOSÉ DO CARMO TAXA
Da Nazaré, também mandador da armação da Sul Angolana. Era um homem muito corpulento, mas uma paz de alma que passava por arreliar alguns maridos.

JOSÉ MARIA CODINHA
Também da Nazaré e mandador da armação da Conserveira. A sua mulher, a D. Felicidade, era um exemplar típico da praia da Nazaré.

IRMÃOS PADEIROS
Era o grupo familiar mais original e unicamente constituído por dois irmãos, já de maia idade, conhecidos por Irmãos Padeiros, sendo um deles o Chico. Não tinham casa, apenas uma pequena canoa encalhada a maior parte do tempo, onde dormiam e cozinhavam na praia. Só iam ao mar pescar à linha quando lhes faltava o vinho e pouco mais. Não tinham quaisquer parentes nem se conhecia a sua origem. Lá os deixei ficar em 1954 com a sua “Palheira”, tal como os encontrei onze anos antes.

JOÃO MALÓ
Algarvio, conserveiro da Conserveira, casado com a D. Virgínia enlatadeira principal que, quando estava mal disposta, rompia numa cantoria esganiçada que denunciava o seu estado de espírito. O velho João Maló tinha uma particularidade que revelava alguma contrariedade, era de fazer desabar para a nuca a seu chapéu preto e também a de baptizar os contratados que trabalhavam com ele com os nomes dos brancos com que não simpatizava.

EMELINO ABANO
Comerciante, sócio da firma Andrade & Abano, meu adversário de renhidas partidas de gamão a maços de cigarros.

ADÉRITO SANCHES
Comerciante e depois industrial de pesca, proprietário de uma das mais importantes casas comerciais de então. Ultimamente pouco tempo lá permanecia.

PATRÍCIO CORREIA
Chegou a ser o maior industrial de conservas e ganhou muito dinheiro no período que terminou cerca de um ano ou dois depois da guerra, mas acabou por falir porque a certa altura convenceu-se que era um homem muito rico e desatou a fazer asneiras. Acabou em Cabo Verde a tentar repetir a primeira proeza que começou num barraco do Albérico Sampaio, coberto com bordões e acabou num grande edifício.

Dr. JOÃO ARAÚJO DE FREITAS
Médico, foi Delegado de Saúde durante vários anos, ficou sem um braço arranhado por uma leoa velha que andava aos cães junto às salinas do Pinda, de que sobreveio uma infecção que levou à sua amputação. Foi ele que me tratou de uma disenteria amibiana que me ia custando a vida. Muitos anos depois, voltei a vê-lo por duas vezes em Lisboa.

Prof. JOÃO CARDOSO DAS NEVES
Professor Primário, foi quem acabou por matar a leoa, mas antes teve de fugir para dentro de um canteiro das salinas, com água pelo joelho e foi daí que a matou. Foi o único homem com quem briguei em Angola, por causa de mexericos quando da saída do Matos Garcia de sócio da Conserveira.

CARVALHO DAS DUNAS
Guarda-florestal, de que apenas me lembro por ser o pai da Fernanda que era uma bonita rapariga e chegou a ser caixa na loja da Conserveira.

JOÃO MANITA
Filho de pais com alguma fortuna vendeu, nos fins da década de quarenta, tudo o que cá possuía e foi para Olhão onde o fizeram presidente do Olhanense e parece que acabou mal de finanças. Era pai da Maria do Carmo, sobre a qual exercia grande vigilância para que ninguém a namorasse.

MANUEL MARTINS
Mais conhecido por Manuel do Motor, casado com a D. Adelina que me fez dezenas de litros de chá de goiaba durante a minha amibiana. Era do Motor por ser o encarregado da central elevatória da água. Tinham 4 filhos; dois do casal: Mário e Antoninho; o Augusto Lopes filho da D. Adelina e o Manuel Dodge, do Manuel do Motor.

JOÃO NUNES CARDOSO
Filho da Escola e antigo despenseiro da Marinha de Guerra. Era o encarregado da pensão do Chico da Conceição, a única existente naquele já longínquo ano de 1943, onde me hospedei à chegada. Anos depois consegui colocá-lo como encarregado de terra da Conserveira, onde ganhava mais do que eu, que era seu superior hierárquico, por causa das percentagens na produção de peixe seco, benefícios elevados que o Prof. Martins pouco tempo manteve.

HERMENEGILDO AUGUSTO SILVA
Mais conhecido por Silva Bindes, era sócio da firma Coimbra & Silva, da e por esse facto também sócio da Lusitana, Lda.

MONTEIRO
Encarregado da estação dos correios, era natural de Matosinhos.

JOÃO VIVEIROS
Empregado de balcão da Sul Angolana, casado com a D. Leontina era, ao tempo, correspondente local do jornal de Moçamedes, o “Sul de Angola”.

VITAL
Padeiro do Antunes da Cunha e especialista em caldeiradas de cabrito e copofonia. Por causa desta última especialidade foi “veranear” para a fazenda do Pinda a fazer de encarregado. Era um dos últimos degredados que para aqui vieram, já livres há muito tempo. Um outro era o chamado St. Antoninho, pequenino e falso. O Vital, que o conhecia bem, dizia que tinha de ser seguro à primeira cacetada.

JERÓNIMO RIBEIRO
Alfaiate que o Tenente-coronel Vitória Pereira, do Lubango, fez jornalista do "Jornal da Huila".

COELHO
Serralheiro da Sul Angolana, tinha umas filhas muito “precoces”.

DELEGADO MARÍTIMO
1º Sargento de Manobras, cujo nome não me recordo, a quem pela primeira vez ouvi chamar Fracção Imprópria ao filho de um industrial que lhe passou à porta montado num burro.

PADRE LOPES
Veio substituir, salvo erro, o Pe. Zagalo e com quem convivi, mas que não conheci muito bem. Acabou por se despadrar e casou, no regresso à Metrópole. Para ter maior liberdade de movimentos, segundo me confidenciou, nunca entregou ao Bispo da Diocese, para não lhe ficar sujeito, a carta de excardinação.

PADRE SERRALHEIRO
Que substituiu o anterior, era um padre com outro tipo de modernidade, sem exageros. Tinha uma personalidade menos complicada que o seu antecessor. Deixei-o lá e mais tarde soube que faleceu no interior, ainda novo.

ALBERTO FERREIRA MARQUES
Secretário Administrativo, mais conhecido por Pega de Arranque. Era bom homem e tinha certa dificuldade em começar a falar e daí a alcunha. Fez a ponte entre dois Administradores e nessa situação mandava organizar bailes no Recreativo, com comes e bebes à custa da Junta Local, a propósito de qualquer evento sem importância. Tantos fez que levou a Junta à banca rota e por isso não acabou a interinidade normal.

HIROÍTO
Empregado de escritório do Antunes da Cunha, era um sósia perfeito do Imperador do Japão com esse nome.

FERNANDO PENALVA
Fundador, ou coisa parecida, de uma seita religiosa que tinha como patrono S. Luís de Gonzaga. Tinha relações de muita influência junto da família do Segismundo Sampaio.

MANUEL AUGUSTO SIVA
Eu com a minha cara de Cristo Velho”, como ele dizia, era mais conhecido por Silva Makeiro, nome que lhe veio de ter tido questões ou problemas com uma parte considerável das pessoas importantes de Moçamedes e de Porto Alexandre. Foi o intermediário da venda da minha cota na Lusitana, Lda, ao Chico da Conceição, com que terminou a minha carreira de industrial de pesca.

FAMÍLIA PEIXE
Apenas conheci duas pessoas desta família, a D. Elvira Peixe e o Chico Peixe que era mestre de um palhabote de cabotagem.

CARLOS PESSOA
Comerciante e, nas horas vagas, fotógrafo amador com algum mérito.

GOMES
Encarregado dos armazéns locais do Sindicato de Pesca, a quem comprei uma pistola 6,35 por 500$00, por volta de 1944.

RUSSO
Correspondente do Banco de Angola.

CELESTINO RAMIRES
Guarda-livros do Patrício Correia.

FAMÍLIA PONTES
Poveiros. Ele era um homem já de certa idade que antes tinha estado em Manaus, casado com uma senhora chamada Ana. O casal só teve filhas e por isso o nome desapareceu. Eram três: a Cândida, casada com o António Trocado, dos quais fui comensal antes de terem ido para Moçamedes tomar conta de um hotel; a Beatriz, nesse tempo já divorciada de um Concha; e a mais nova, a Geninha, casada com o Justino Pacheco.

1 de abril de 2006

P.Alexandre: Obrigado a todos

6 de Dezembro de 1854



Pensar na fundação de Porto Alexandre, a terra onde nasci, faz-me pensar em primeiro lugar nos meus antepassados.

É, portanto, a eles que quero prestar aqui uma singela homenagem. E através deles a todos os outros que, naquele tempo, desbravaram terras, abriram caminhos, suaram e sofreram naquela maravilhosa terra plena de beleza e riqueza natural.

Ao fazer uma viagem ao passado lembro todos os que, no final do Séc. XIX e princípio do Sec. XX, saíram de Portugal Continental procurando nas colónias uma vida melhor ou, nalguns casos, também uma aventura.

Sabiam, no entanto, que essa vida melhor não estava lá à espera deles. Souberam logo que pisaram aquelas terras que essa vida melhor teria que ser construída por eles.

Quando chegaram, encontraram pouco mais do que nada que se parecesse com o mundo que conheciam. Do nada fizeram casas, traineiras, captações de água potável, latrinas, e depois escolas, igrejas, fábricas, hotéis. Dito assim parece até simples. Dito assim por alguém que só conheceu Angola já com todos estes sinais de civilização europeia, parece até afronta aos que tanto lutaram para fazer tudo isto.

Depois daqueles primeiros grupos outros lhes seguiram o exemplo e durante todo o Sec. XX milhares de portugueses partiram para os então chamados territórios ultramarinos. Felizmente para eles, os que chegaram a Angola nas décadas de 50, 60 e 70 já encontraram a terra desbravada. Os relatos dos pioneiros podem para eles parecer cenas de filme.
Mas foram todos, os pioneiros e os outros, que fizeram de Angola a terra que nós deixámos há trinta anos.

A história da colonização dos territórios portugueses em África está, naturalmente, cheia de erros, contradições, injustiças, alguns pecados mortais.

Alguns falarão mesmo de um pecado original colocando a questão: tinham os países europeus o direito de colonizar e aculturar as terras africanas? Talvez hoje muitos digam que não com a pose de quem afirma uma verdade insofismável.

Mas a maior verdade de todas é a dialéctica da história. A realidade histórica não pode ser apagada. Injusto é julgar a história de ontem com as ideias de hoje.

A história de ontem – com todos os erros e omissões – não faz dos nossos avós exploradores de negros ou ferozes racistas. A história de ontem mostra-nos homens e mulheres valentes no seu tempo. A história de ontem mostra-nos gente que, procurando para si o bem de uma vida melhor, criou em terras africanas incomensuráveis riquezas para a Pátria que amavam.

A história de ontem mostra portugueses algarvios, nazarenos, minhotos, transmontanos e outros que deram corpo à palavra miscigenação criando várias gerações dos que hoje se usa chamar luso-africanos, mas que eram apenas outros portugueses.

Mais tarde, várias gerações depois, foi com profundo espanto e indescritível tristeza que todos eles ouviram dizer que Angola não era deles. Quando todos se habituaram a acreditar que Angola era Portugal e que todos os que nasciam em Angola sob bandeira portuguesa eram portugueses. Infelizmente, a Pátria portuguesa não entendeu assim.



Os meus antepassados

Os meus ascendentes paternos – Alves e Peleira – fizeram de Angola a sua terra desde meados do Sec. XIX.

Em primeiro lugar ao meu trisavô José dos Santos Peleira, um dos que algarvios que pertenceu ao grupo que primeiro “descobriu” Porto Alexandre. Dele descende o meu Avô paterno Virgílio Peleira que não tive a felicidade de conhecer.

Do meu bisavô António Alves, de origem Minhota (Ponte de Lima) descende a minha avó paterna Irene Alves Peleira.

Mais recentes na chegada a Angola são os meus ascendentes maternos – Trocado e Delgado.

O meu bisavô Manuel Francisco Trocado chegou a Angola pela primeira vez em 1921. Dois anos mais tarde traz consigo a mulher - Maria Feiteira Trocado – e os filhos, Baldomero e Nair, a minha avó.

Em 1922 tinha chegado a Porto Alexandre José Venâncio Delgado, juntando-se a seu pai que já lá se encontrava. Viria a casar com Nair Trocado. São os meus avós maternos.

Obrigado a todos por me fazerem ter nascido naquela terra maravilhosa.



Maria Nair Delgado Peleira de Almeida

Lisboa, 6 de Dezembro de 2005

31 de março de 2006

Os Poveiros

“Passavam carros eléctricos, automóveis e carroças, muitas carroças, em cujos condutores reconheceu também vozes de portugueses. «Todos iam arranjando a sua vida, menos ele! E quem sabe? Quantos outros haveria que nem uma carroça…»

“No cais, lá estavam os escaleres dos poveiros, com um pouco de água a estremecer no fundo e encharcadinhos de sol.” (1)

Estes poveiros, de Ferreira de Castro, arribariam a Porto Alexandre em 1921.

“A ida dos pescadores da Póvoa de Varzim para Angola e Moçambique está relacionada com a emigração dos poveiros para o Brasil. Em 1920 as autoridades brasileiras determinaram que os pescadores estrangeiros só poderiam continuar a actuar nas águas do Brasil desde que: se naturalizassem brasileiros até 12 de Outubro do referido ano; nacionalizassem as suas embarcações; organizassem «companhas» de modo que dois terços da tripulação de cada barco fosse brasileira.

“Os pescadores da Póvoa de Varzim obedeceram às duas últimas condições arvorando nos seus barcos a bandeira do Brasil e pedindo, através de editais, a colaboração de tripulantes brasileiros. Mas como, na sua quase totalidade, se escusaram à naturalização, tiveram de regressar à Póvoa, em número de cerca de mil. Em 30 de Outubro de 1920 chegou a Lisboa o primeiro contingente de 250 pescadores, seguindo-se-lhes outro grupo, de 302, desembarcados em Leixões em 5 de Novembro…

“Embora com os marítimos da Póvoa de Varzim tivessem regressado do Brasil - e pelos mesmos motivos - pescadores de outros lugares da nossa costa, o conjunto poveiro sobrelevou, em amplíssima escala, os pequenos contingentes dos restantes centros. Daí o facto de na Póvoa de Varzim se virem a sentir de um modo mais dramático os problemas sociais e económicos derivados do retorno de tão grande massa de indivíduos, para cuja utilização nada estava preparado. Extintos os ecos da recepção calorosa e romântica, cedo se verificou que uma crua miséria enlaçara bastantes dos que haviam voltado, e ameaçava muitos mais, tornando-se urgente a tomada de medidas que evitassem tamanha e injusta desgraça…”

Por outro lado, Norton de Matos que queria “assentar no litoral do sul de Angola as bases de uma indústria piscatória voltada para o futuro, lançou a ideia da instalação de uma colónia de poveiros em Porto Alexandre, facilitando a solução de todos os pormenores decorrentes da sua proposta.

“Em 24 de Fevereiro de 1921, no paquete África, partiam de Lisboa para Porto Alexandre 62 dos pescadores poveiros regressados do Brasil, que chegaram ao seu destino em 14 de Março; à frente tinham sido enviados os seus barcos e aprestos, que às praias africanas levavam, pela primeira vez, elementos típicos do areal e da enseada da Póvoa. Entretanto o General Norton de Matos mandara construir em Porto Alexandre um bairro destinado às famílias dos pescadores poveiros, a fim de as atrair e fixar ao solo de Angola.” (2)

“Um dos pescadores poveiros idos para Porto Alexandre, Manuel Francisco Trocado , dizia em carta dos finais de 1921: “Acrescentarei ainda que o sistema de pesca que adoptamos é muito fácil: fizemos uma sacada, como uma nassa, que nos importou em 2 contos. Lança-se ao mar, seguras as extremidades por 2 barcos, e em um, ou, no máximo em dous lanços, carregamos o barco de peixe”. (3)


pesquisa e texto complementar de Admário Costa Lindo




1 CASTRO, Ferreira de. A Selva, Livraria Editora Guimarães & Cª , Lisboa, 1957 (18ª edição), p. 75

2 GONÇALVES, Flávio. Os pescadores poveiros em Angola e Moçambique , Póvoa de Varzim Boletim Cultural, volume VI nº 2, C.M. da Póvoa de Varzim, 1967. pp. 286/288

3 “O Comércio da Póvoa de Varzim”, 11/10/1921.

30 de março de 2006

Maria da Cruz Rolão




“A indústria piscatória em Março do mesmo ano [1861] foi fortalecida com a chegada de novos Algarvios : José Rolão, sua mulher Maria da Cruz Rolão e dois filhos, João da Cruz Rolão e Francisco Pedro da Cruz; Manuel Tomé do Ó, Manuel Galambas e José Mendonça Pretinho; em Julho, da mesma proveniência, de Olhão, no vapor D. António, João da Rosa Machado, José Martins Ganho, João Lourenço Galarão, João do Sacramento Pintassilgo, Lourenço de Sousa Farroba e Manuel Nunes de Carvalho, «o quais trouxeram a primeira rede e se fizeram acompanhar de uma canoa.

”Para intrépidos e valentes filhos de Olhão, a viagem em vapor, tendo barcos seus, não era coisa com que se conformassem; e, assim, Bernardino do Nascimento, O. Brancanes e Francisco Ferreira Nunes, societários do Caíque Flor de Maio, resolveram ir até Mossâmedes, arranjando para isso uma companhia em que entravam, além dos dois, Pedro Mendes. Pelo José (piloto), Manuel Ramos de Jesus Pereira, João da Encarnação Peleira, e um pequeno chamado Baptista.

“O intento desses destemidos, porém, esbarrou contra a decisão das autoridades, que lhe proibiram a viagem, com fundamento nas poucas possibilidades do barco e do diminuto número de tripulantes. No entanto o travão não foi de carácter definitivo. A intervenção do Dr. Estêvão Afonso, junto de José Estêvão, então deputado por Aveiro, removeu a dificuldades encontradas, e os cotados algarvios chegaram a Mossâmedes em 3 de Agosto, daquele mesmo ano de 61.

“Foi à corrente emigratória algarvia que Mossâmedes e baías próximas ficaram
devendo o empurrão que as transformou em apreciáveis centros piscatórios.”

Delgado (2) vol. II pp. 60/61



“Elegeram, entre si, o seu próprio chefe. A escolha recaiu no colono Cruz Rolão, algarvio que deve ter indo da sua terra na primeira viagem do caíque «D. Ana», em 1860, com Francisco de Sousa Ganho, ou no caíque «Flor de Maio», que em 1863 fundeou na baía de Porto Alexandre.

“Cruz Rolão era homem humilde, mas sensato e sabedor. Houve-se muito bem nas funções em que foi investido. Após a sua morte, em data que ignoramos, sucedeu-lhe a viúva, Maria da Cruz Rolão. Esta sabia ler e escrever, tinha alguma cultura e, sobretudo, era possuidora duma coragem e decisão muito fora do vulgar. Impunha-se aos seus administradores e a todos pela sua energia e prestígio. Por várias vezes, Maria da Cruz tomou decisões importantíssimas para a comunidade que chefiava. Em dada altura, os hotentotes, vindos do Sudoeste, acossados pelos alemães, passaram ao nosso território e dedicavam-se à pilhagem e ao massacre. A povoação de Porto Alexandre estava nesta contingência. Porém, a regedora procurou estabelecer contacto com os chefes daquela gente, o que conseguiu, e teve com eles uma conferência, no local denominado por Arco do Carvalhão, a uns trinta e cinco quilómetros para Leste do aglomerado populacional, e este foi salvo.

“Igualmente, em data que não ficou registada ( mas deste facto nos fala o grande almirante Augusto Castilho), fundeou um navio de guerra inglês na baía, em frente à habitação de Maria da Cruz. Pouco depois, os súbditos de Sua Majestade, esquecendo-se que estavam em território duma nação que lhes devia merecer muito respeito, iniciaram exercícios de tiro para a restinga que forma a baía. Muitos dos projécteis iam cair do outro lado, no mar, onde andavam, calma e despreocupadamente, os nossos pescadores, nas suas actividades. Este acto arrogante levantou protestos das mulheres e crianças que estavam em terra, porquanto traziam no mar os maridos, pais e irmãos. Em pranto, dirigiram-se a casa da regedora e pediram-lhe que acabasse com aquele abuso do navio estrangeiro.Maria da Cruz mandou içar a Bandeira Nacional num tosco mastro que tinha à sua porta, meteu-se num bote e dirigiu-se para bordo do navio britânico. Saias arregaçadas, punhos cerrados, gesticulando e no seu fraseado de gente do mar, intimou o comandante inglês a acabar imediatamente com a perigosa brincadeira. Aquele, que apenas deve ter compreendido a indignação e o desassombro duma verdadeira mulher de armas, fez suspender o fogo, abandonando o fundeadouro no dia seguinte.”

Moreira (1) pp. 20/21


pesquisa de João Manuel Mangericão e Admário Costa Lindo

Porto Alexandre: A Fixação

“Dez anos depois da chegada dos portugueses vindos do Brasil [1849] começa a colonização dos algarvios que para aqui se deslocam nos seus próprios barcos em viagens de autênticos aventureiros honrando bem os seus antepassados navegadores.

“O primeiro a chegar é José Guerreiro de Mendonça, de Olhão, em 1860.

Nos dois anos seguintes chegam muitos outros. Uns ficam em Moçamedes, outros irradiam para a Baía das Pipas, Baba e Baía das Salinas.

“Os do Baba não se demoram aí indo fixar-se em 1863 em Porto Alexandre, onde já encontram 6 feitorias, todas de gente de Moçamedes, 4 das quais tinham ido para ali em 1861.

“Os pescadores de Porto Alexandre irradiam para o Sul, indo fixar-se em 1865, na enseada do Leão na Baía dos Tigres. Pouco se demoram dada a dificuldade de recursos de toda a ordem e a quase impossibilidade de os obterem.

“O desejo de vencer não desfalece em homens desta têmpera. Insistem e vencem. Em 1870 já se encontra na Baía dos Tigres um numeroso grupo de colonos. É sobretudo a colonização dos algarvios que se espalha pelas praias.

“Em 1884 nova seiva é dada à colonização com gente da ilha da Madeira. O Governo de Portugal fornece-a. Esta é formada de agricultores e pescadores. Os primeiros destinam-se sobretudo ao Planalto da Huíla e os segundos fixam-se em Moçamedes, a maioria no Baba e outros seguem para Porto Alexandre.

“Depois ocorrem portugueses, aos poucos, de todas as partes.

“Só em 1921 volta a haver nova corrente emigratória, desta vez de pescadores poveiros.

“Foi com o patrocínio, larga visão e perseverança dos poderes públicos, que esses homens de rija têmpera, aventureiros e colonizadores por excelência transformaram um areal deserto e abandonado na próspera região de hoje.” (1)
A loa sobre “o patrocínio, a larga visão e a perseverança dos poderes públicos”, aliás já bastante desmontada, compreende-se uma vez que o texto acima descrito é apresentado no Semanário “O Sul de Angola” como sendo da “autoria” da Câmara Municipal de Moçamedes, poder público, portanto.
'' Para sul de Moçamedes, as dificuldades de ligação por terra com o litoral eram muito maiores: o deserto impunha-se com a sua presença, perdendo-se os areais na linha do horizonte, faltava a água doce ou custava cada vez mais a encontrar e faltavam também, excepto no rio Curoca, as pequenas faixas aluvionares nos leitos dos rios temporários que existiam para norte. Todas estas circunstâncias não seduziram a fixação dos primeiros povoadores, para quem a pesca era uma actividade lucrativa, como qualquer outra.'' Apenas com o novo episódio colonizador, ligado aos fluxos algarvios de Olhão, se encetou a radicação de gente nestas paragens, na medida em que a riqueza do mar foi fortemente atractiva e pesou mais do que qualquer outro factor: em 1861 surgiram as primeiras pescarias em Porto Alexandre e, pouco mais tarde, na Baía dos Tigres, apesar da falta de água, de lenhas e de outros recursos. É possível que antes de 1870, data em que foi concedida uma licença para uma lancha navegar entre a Baía dos Tigres e Moçamedes, já ali se tenham fixado os primeiros colonos (2) .
“Também para norte de Moçamedes a influência dos pescadores algarvios foi decisiva: com grande mobilidade, favorecida pela utilização dos caíques e pela habituação a grandes deslocações, animaram e reforçaram núcleos de pesca já existentes e dispersos no litoral, criando mesmo alguns de novo, tal como sucedeu, por exemplo, na praia das Salinas.
“Não obstante em muitos desses locais não haver água potável, ou se obter a certa distância (em Porto Alexandre, no curso do Curoca, a 12 milhas a sotavento; nos Tigres, no Cunene, a cerca de 50), utilizou-se água salobra até que os caíques de Moçamedes principiassem a frequentar os vários portos. Esses caíques levavam como lastro barris de água doce, trazendo dos portos do Sul, onde o mar era riquíssimo em peixe, peixe seco e em salmoura para Benguela, Luanda e Ambriz (3)
''A partir de 1860 e até 1879, período de tempo em que se registou o maior fluxo dos pescadores de Olhão, tinha-se desencadeado novo surto agrícola, ligado à cultura do algodão; este facto levaria a população local a desviar os interesses da pesca para as terras férteis dos vales, intensificando aí o povoamento (4). Ora foi naquele espaço de tempo, que se assistiu a uma modificação radical nos mecanismos de difusão do povoamento, pois se autonomizaram dois fluxos que permitiram, em simultâneo, o desenvolvimento dos núcleos de colonização no litoral e no interior, junto de terras agricultadas: uma corrente populacional agrícola, alimentada sobretudo por transferência interna da população, e uma corrente piscatória proveniente do Algarve, responsável pela criação de alguns estabelecimentos no litoral. Se para norte de Moçamedes a influência desta última corrente se traduziu numa justaposição de grupos humanos que deram nova feição e incremento às lides do mar, foi sobretudo para sul que a maior percentagem de algarvios se fixou, criando no litoral desértico as suas instalações piscatórias. Tudo isto se compreende pela natureza dos colonos, porque o seu estabelecimento foi livre, espontâneo, realizado à margem de projectos oficiais, que não só nunca teriam aproveitado a fracção sul do litoral estudado mas, também, não teriam deixado de propor aos novos colonos o exercício da agricultura, mesmo conhecendo a sua origem. '' (5)

pesquisa e texto complementar de Admário Costa Lindo


1 Colonização de Moçamedes, Bosquejo Histórico, Preito de Homenagem, in “O Sul de Angola”, 4 de Agosto de 1949.
2 Castilho (1) pp. 129-142 e pp. 177-178
3 Iria(1)
4 No vale do Curoca, que tinha 3 propriedades agrícolas em 1859, havia 12 em 1871, das quais a mais progressiva era a de S. João do Sul; nos vales do Bentiaba e Inanmangando, de 2 fazendas em 1859 passou-se a 5. B.O. de Angola, nº 738.
5 Medeiros (1) pp.36/38

A Visão dos Algarvios



O desenvolvimento de Porto Alexandre esteve sempre ligado à exploração de todo o litoral do Namibe: “trata-se duma região de colonização tardia à escala angolana, que se efectuou numa época em que a escravatura ia perdendo importância; tratava-se, portanto dum território marginal até ao século XX, pois Benguela constituía o marco mais meridional na época de ouro do tráfego negreiro; trata-se também duma franja costeira onde se registou a maior concentração de pescarias, as quais, apenas por si próprias, explicam o enraizamento geográfico dalgumas povoações (por exemplo, Porto Alexandre e Baía dos Tigres); trata-se, enfim, duma área com características climáticas originais, que condicionam relações económicas singulares entre o litoral e o interior.” (1)

É bom notar que, até meados do séc. XIX, a aposta do Governo de Lisboa sempre foi no sentido de implementar na região um plano de colonização com base na exploração agrícola. Foi por iniciativa própria dos colonos, avultando neste aspecto os Olhanenses, que se iniciou a exploração da riqueza marinha do litoral.

Com efeito, “em 1850 havia em Moçamedes «7 pretos oriundos de Luanda ocupados nas pescarias do Estado além de 4 praças da estação naval que utilizavam duas redes boas e outras de algodão fabricadas no local, além de 3 escaleres»; (2) 7 particulares tinham também escaleres, empregando 40 homens, dos quais apenas 3 brancos. Os revezes sofridos pelos agricultores e as dificuldades de comunicações, a instabilidade das populações indígenas do interior, fizeram com que muitos colonos e até funcionários se tivessem dedicado, em maior ou menor escala, à pesca e ao comércio da urzela.” (3)

'' Em 1860 um novo episódio histórico, cujos efeitos se prolongaram mesmo até ao nosso século [séc. XX], teve carácter decisivo na evolução do povoamento e das bases económicas do litoral ao sul de Benguela - o afluxo acidental de pescadores de Olhão. Nesta data, o porto de Moçamedes continuava a servir de ponto de apoio para todas as acções de colonização estimuladas pelo governo de Lisboa que, então, se dirigiam para os planaltos do interior. Esporadicamente, a bordo de muitos navios de escala, chegaram alguns colonos acompanhados de familiares e um ou outro grupo de degredados que, apesar das constantes ameaças de guerrilha dos povos do Nano, eram os efectivos humanos de que se dispunha para prossecução dos objectivos da política ultramarina; essa gente era instalada em pequenos «redutos» de povoamento branco, geralmente protegidos por um forte.

'' Ao invés do que sucedia, os pescadores de Olhão, que eram considerados os melhores do reino e «mui destros na pescaria do mar alto» (4) , principiavam a vir, fruto do acaso, quer pela sua habituação ao mar, quer também depois pela influência das notícias de conterrâneos já fixados. A frequentação do porto de Moçamedes pela tripulação dos navios nacionais, entre a qual se poderiam contar vários algarvios, mostrara as grandes potencialidades oferecidas pelo mar que sulcavam, não só pela quantidade, mas também pela qualidade de peixe que nele existia.
'' Embora na primeira metade do século XIX houvesse alguns algarvios entre os componentes das correntes migratórias que se articulavam em Moçamedes (5) , não se pode falar, antes de 1860, duma autêntica vaga de colonização algarvia. Esta correspondeu a um processo migratório de características originais: enquanto oficialmente se continuava a preparar e a pensar numa colonização de base agrícola, com a vinda de pescadores do Algarve gerou-se uma ocupação espontânea do litoral que se prolongou no tempo, de forma contínua e permanente.” (6)


pesquisa e texto completar de Admário Costa Lindo


1 Medeiros (1) p.18.
2 Felner (1) vol. I, parte V.
3 Medeiros ob.cit. pp. 34/35
4 Câmara (1) p. 362.
5 Iria (1). Ribeiro Villas, citado por este autor, refere que em 1854 se encontravam estabelecidos no litoral correspondente à actual cidade de Porto Alexandre, alguns pescadores europeus, que eram em regra algarvios. Ainda segundo A. Iria, certas medidas de encorajamento à pesca, tomadas em 1856 pelo Marquês de Sá da Bandeira, derivaram da constatação da '' já ... tão vantajosa actividade dos pescadores do Algarve. ''
6 Medeiros ob.cit. pp. 30/31

8 de março de 2006

Moçamedes: Origem e 1ªs Letras




MOÇAMEDES



O nome primitivamente dado à região onde se ergue hoje a airosa e progressiva cidade de Moçâmedes foi o de Angra do Negro; as primeiras referências certas que dela se conhecem remontam ao tempo do governador- geral Francisco de Souto Maior, que, vindo do Brasil para Angola, em 1645, ali aproou para fazer aguada e comprar mantimentos.

Tornou-se historicamente famosa a expedição que Gregório José Mendes e Luís Cândido Pinheiro Furtado fizeram em 1785, explorando a Angra do Negro, que passou a designar-se por Baía de Moçâmedes, em homenagem ao governador-geral de Angola, desse tempo, José de Almeida e Vasconcelos, Barão de Moçâmedes. A povoação que lhe emprestou o seu nome é uma pequena aldeia do concelho de Vouzela, no distrito de Viseu.

Gregório José Mendes era rico comerciante e sargento-mor das ordenanças, tendo tomado sobre si o encargo material da expedição. Isso nos leva a pensar que tenha havido também interesses mercantis a motivá-la, que não fosse apenas o amor pátrio e o apreço pela ciência a mover a máquina e a imprimir-lhe o impulso... Pinheiro Furtado, por sua vez, era distinto engenheiro e oficial das forças armadas; navegava na fragata “Luanda”, pilotada por Manuel José da Silveira. A expedição de Gregório José Mendes seguia por terra e a de Pinheiro Furtado por mar. Logo à chegada, tiveram notícias de que alguns portugueses, e entre eles o tenente de artilharia, José de Sousa Sepúlveda, e o cirurgião Francisco Bernardes tinham sido mortos pelo gentio, devido a terem-se internado no sertão, praticando violências.

O local onde se situa a “cidade do mar e do deserto” foi pouco depois abandonado. Retomaram-se mais tarde as posições e fundou-se o presídio, por volta de 1840. Cinco anos mais adiante, em 1845, estabeleceu-se aqui uma colónia de brasileiros. Com efeito, em 1838, Sá da Bandeira ordenara que a região fosse efectiva e definitivamente ocupada; no ano seguinte, organizou-se a expedição de Pedro Alexandrino da Cunha e João Francisco Garcia, que repetiram de perto a proeza de Gregório José Mendes e Luís Cândido Pinheiro Furtado. Foram eles que fundaram a feitoria. A expedição foi apoiada também por abastados comerciantes, cujos nomes são conhecidos.

A fortaleza edificada neste local recebeu o nome de S. Fernando, em homenagem ao rei de Portugal; trata-se de D. Fernando II, marido da rainha D. Maria II. A igreja paroquial, por sua vez, foi dedicada a Santo Adrião, em preito de reconhecimento ao governador-geral de Angola, Adrião Acácio da Silveira Pinto.

A 4 de Agosto de 1849, os colonos brasileiros, chefiados por Bernardino Freire de Figueiredo Abreu, desembarcaram no porto desta localidade; tinham feito a viagem a bordo da barca ou nau “Tentativa Feliz”, que fora escoltada pelo brigue “Douro”. Um ano depois, em 26 de Novembro de 1850, desembarcava novo contingente de colonos, que viajou na “Bracarense”, comboiada pela mesma unidade de guerra que acompanhara a primeira expedição.

Sá da Bandeira elevou a nova povoação à categoria de vila, poucos anos após a sua fundação, no ano de 1855; a sua elevação a cidade efectuou-se em 1907, para comemorar a visita do príncipe real D. Luís Filipe.

Moçâmedes foi escolhida para local de cura e de repouso, sobretudo para o funcionalismo público. A junta de saúde enviava para ali os doentes que careciam de mudança de ares e estada em climas saudáveis. Fundou-se um hospício em 1856; algumas dezenas de anos mais tarde, em 1885, era estabelecido o Sanitarium, de que se esperava frutos abundantes na recuperação da saúde daqueles que a longa permanência em Angola tinha depauperado.

Poderá dizer-se que um dos primeiros cronistas da Moçâmedes foi J. F. Pederneira. Poderemos admitir a hipótese de se tratar de João Feliciano Pederneira, professor do ensino primário, com notas biográficas neste trabalho. Contudo, não nos atrevemos a sustentar que o seja, apenas admitimos tal probabilidade.

As referências à sua escola primária vem de 1849, sendo o seu primeiro mestre José Inácio dos Reis. Encontramos a exercer funções de magistério, em Moçâmedes, nas aulas dos dois sexos, mais de quatro dezenas de agentes de ensino. As respectivas notas biográficas são das mais interessantes que podemos registar.




Extracto do Livro ”Primeiras Letras em Angola” - Edição da Câmara Municipal de Luanda - 1973, de Martins dos Santos - Pag.s 74 e 75

pesquisa de João Rafael dos Santos